Passos N. 224, Maio 2020

O tempo do nosso juízo

Foi um momento marcante, daqueles que vão direto para a memória e nunca saem dela. A praça vazia, a escuridão caindo. A chuva, gradualmente mais forte. E um homem que, vestido de branco, diante do crucifixo, invoca Deus usando as palavras dos discípulos: “Mestre, não Te importas que pereçamos?”. Não Te importas comigo, conosco? Cenas semelhantes às que teríamos visto alguns dias depois, em uma Semana Santa igualmente sem precedentes: a Missa in Coena Domini, a Via Crucis, a Páscoa… Tudo reduzido ao essencial. O Papa, alguns outros. E a presença de Cristo. Mas naquela oração no final de março, no clamor de Francisco em uma praça pela primeira vez deserta, também se abriu uma estrada. Preciosíssima, para quem está tentando percorrê-la. Porque, como o Papa disse, esta situação nunca vista, “desmascara a nossa vulnerabilidade e deixa a descoberto as falsas e supérfluas seguranças com que construímos os nossos programas”, e nos faz experimentar o quanto precisamos de Cristo Ressuscitado, não é uma condenação, é um vislumbre que de repente entrou em nossas vidas. É uma oportunidade, grandiosa.

É “o tempo do nosso juízo”. Não “do teu juízo”, insistiu Francisco dirigindo-se a Deus com ousadia, mas “do nosso juízo: o tempo de decidir o que conta e o que passa, de separar o que é necessário daquilo que não o é”. O tempo da conversão. Onde a esta palavra não corresponde nada de moralista, como se fosse um esforço ético: somos convidados a olhar. Quem olhar, o que procurar. É um passo de conhecimento.

Muitos outros disseram isso de muitas maneiras, nas semanas seguintes, e também nas próximas páginas você encontrará exemplos. Se essa dramática emergência passasse sem uma tomada de consciência da nossa parte, sem descobrirmos algo mais profundo de nós mesmos e da realidade, seria uma calamidade que se adiciona ao peso insuportável da morte de muitos, da dor, do medo. Aliás, colocaria outra pedra diante do sepulcro de nossa humanidade. Porque nos deixaria mais perdidos e vazios do que antes.

E, no entanto, esse “tempo vertiginoso” pode se tornar uma oportunidade para um “despertar do humano”, como diz o título do livro que publicamos em nosso site (www.cl.org.br). É uma entrevista de Alberto Savorana com Julián Carrón, o presidente da Fraternidade de CL. Fazendo as contas até o fim com “a forte irrupção da realidade”, que “trouxe de volta em toda a sua grandeza aquela exigência de entender a que chamamos razão”, enfrenta as perguntas que todos estamos nos fazendo, sem diminuí-las. Porque é quase inevitável que surjam, mas é nossa escolha levá-las a sério. “Nós também, de mil formas acostumados a fugir de nós mesmos e do apelo profundo das coisas, talvez neste período não tenhamos podido deixar de parar e pensar”. Stop and think, como a expressão que Carrón leu certa vez num jornal americano.

Portanto, esse livro também acompanha a tentativa que fazemos. Nas páginas desta edição de Passos, você encontrará reflexões, fatos e testemunhos que ajudam a tomar decisões, a tirar proveito da circunstância única que estamos enfrentando, e a entender mais sobre quem somos e do que nossa vida precisa. Do essencial.