Deus e o homem

Palavra entre nós
Luigi Giussani

Notas de um diálogo de Luigi Giussani com um grupo de Memores Domini. Riva Del Garda, 5 de março de 1995

“Eis que eu estabeleço um caminho novo no mundo. Vocês não o veem? Já começou."
Nós também não o vemos demasiadas vezes, quando no entanto somos os seus artífices imediatos, os seus protagonistas decisivos: Ele se serve desta pá que sou eu, corroída pelo tempo, preguiçosa, relutante em ser tomada nas mãos, por aquelas Suas duas mãos; ser tomada por aquelas duas mãos é o único calor da vida, o único calor seguro, que dá a vontade de abraçar a todos, com todas as distinções possíveis e imagináveis, mas, no fundo, igualmente a todos.
Vocês compreendem então como seria angústia, se não fosse abandono àquelas duas mãos que seguram esta pá que sou eu; seria uma angústia, seria uma dor insuportável, seria uma impotência inconcebível, e por isso esmagadora, não poder realizar, ou que pareça não se poder realizar, para cada um de vocês, de nossa parte que lhes trouxemos a mensagem (a mensagem passou através da nossa carne, da minha carne e dos meus dentes, dos meus olhos e do meu coração, através de nós, que somos responsáveis diante de Deus e de Cristo pelo fato de que a vida de vocês tenha sido atravessada por esta mensagem, por este convite, por este empurrão contínuo, por este chamado de atenção contínuo), o que foi dito a propósito da obediência: para ser obedientes é preciso que aquele a quem se obedece tenha a caridade de compartilhar os sacrifícios que chama a fazer, de compartilhar com vocês os sacrifícios que os chama a realizar. Seria quase desespero, se não se tornasse abandono àquelas mãos – às mãos que seguram o cabo da enxada que sou eu –, depois de tê-los invadido com as Suas Palavras, com a Sua memória, com a Sua presença, não poder acompanhar vocês um a um, compartilhando com vocês cada gesto, compartilhando com vocês cada ímpeto de previsão, de espera, compartilhando com vocês até a fraqueza de cada pensamento cético e niilista; compartilhando com vocês um passo após o outro, como se nós fôssemos mães e vocês fossem os filhinhos.
Mas não pensamos e não olhamos para vocês senão desta forma. E se vocês têm bem claro este nosso martírio, deveriam ter mais claro que sem Ele – Ele, não eu – vocês não podem fazer nada. Sem o seu Espírito, sem a força do seu Espírito, nada há em vocês, nada restaria em vocês, nada! E nada não lhes seria hostil, negativo, tudo se tornaria negativo, como o tempo; nada seria em vocês diferente do tempo de todos, do tempo de todos do qual cada instante vai rumo à morte, cada instante corrompe, engana e corrompe, corrompe e engana.
Este é um sentimento, é uma paixão que quase preme o nosso coração: eu creio estar falando por todos os outros que são chamados a compartilhar imediatamente comigo esta resposta que todos vocês devem dar conosco a Deus: não a um Deus abstrato: a Jesus neste mundo. Estou convencido de que vocês compreendem isto. Não o digo por emoção, para comunicar uma emoção: digo-o para comunicar uma razão, a razão mais imediata para estar como João no ombro de Jesus na última ceia, como vimos no detalhe do cartaz de Páscoa de 1990, ou como Simão no vigésimo primeiro capítulo de São João: “Sem Mim, nada podes fazer”. Então a memória de Ti é tudo, e esta memória é mendicância de Ti. Devemos comprimir o invólucro de cada hora dos nossos dias: que a própria hora se parta e se deixe preencher por este abandono a Ti, por esta certeza de Ti, por esta espera matematicamente – que feio! –, amorosamente segura, que é um amor seu e um amor meu como certeza de espera.

E eis a importante reflexão que resume, depois do dia capital de ontem, trabalhando sobre os textos de Litterae [Reconhecer Cristo e Deus: o tempo e o templo] (antes que sejam editados em livro, vocês devem arrancá-los das revistas e tê-los na mesa de cabeceira, lê-los e relê-los), que quer indicar sinteticamente as notas de consequência mais impressionantes daqueles textos.
A coisa toda já estava prevista, porém, rapazes, porque alguém pensa nisso sempre. Não é preciso ter uma criança nascida do próprio ventre para que isto seja verdade: sua mãe sempre cuida. Mas é muito mais do que uma criança nascida do ventre, é o sentido daquela criança que nós carregamos e aquilo pelo qual vale a pena que uma mãe a carregue no ventre e cuide dela durante anos, anos e anos, para ser depois normalmente defraudada e desenganada pelo tempo da vida. Mas quando chega aquilo que nós trazemos no coração, que sabe lá como nos foi dado, sabe lá como refletiu no nosso coração; quando nós trazemos aquilo que temos no coração, então é justo: é justo conceber, é justo estremecer durante nove meses, é justo estremecer quando nasce, é justo abraçá-lo, como quer que seja, e acompanhá-lo para dentro da vida (educação); acompanhá-lo para dentro da vida e, cada vez mais de longe, acompanhá-lo até a morte. Este nosso anúncio, este nosso despertar é gritado ao mundo inteiro; ao mundo inteiro, que é o mundo da casa, o mundo da família, da nossa família, o mundo do nosso movimento, o mundo da diocese, da Igreja local, o mundo da Igreja universal, o mundo da nossa pobre, desgraçada pátria, o mundo da Europa sanguessuga do mundo, o mundo do “mundo” que está despertando para certos direitos que substituem o paraíso e Deus (mas quando os tiverem obtido terão somente uma visão espectral dos campos de mortos, como diz Eliot descrevendo a religião do menino definhado).
Foi pensado este nosso caminho, o caminho destes dias!

a) Lembram-se do trecho que escutamos ontem de manhã? "Ave, verum Corpus natum de Maria virgine; vere passum, immolatum in cruce pro homine; cuius latus perforatum fluxit aqua et sanguine! Esto nobis praegustatum mortis in examine"; "salve, verdadeiro Corpo nascido de Maria virgem; verdadeiro afligido, imolado na cruz pelo homem; de cujo lado transpassado sai sangue e água! Seja por nós pregustado no momento da morte". Que eu te deguste na vida, ó Senhor, como desejarei experimentar-te no instante em que me julgares no fim.
Deus, o Mistério que faz todas as coisas, aquele Mistério para o qual justamente os trezentos representantes de várias religiões, junto com o Cardeal de Milão, chamaram a atenção de todo o mundo naquela sua breve procissão em Milão, concebido de trezentas maneiras diferentes, ou melhor, imaginado, e depois, com temor e tremor, definido; aquele Mistério envolveu-se com o homem.
Que embaraço quando, chamado pela primeira vez pelos monges budistas do Monte Koya, falei do cristianismo, no centro cultural da cidade de Nagoya (lotado como nunca, dizia-me o diretor). Durante nove décimos, e até mais, da conferência, falei do Mistério que se revela na harmonia das coisas, que é o tema deles, pelo qual adoram – adoram! – cada folha de grama, cada espinho de cacto, cada fio de cabelo da cabeça: sabem que o Mistério existe, mas não sabem o caminho para alcançá-lo e o imaginam assim. Que embaraço quando, faltando já três minutos para o final, eu disse a mim mesmo: “Tenho de dizê-lo, tenho de dizê-lo”. E o disse: “Esta harmonia universal, este Mistério pelo qual o espinho de cacto tem valor, pelo qual o espinho de rosa tem valor, pelo qual o coração da mãe tem valor, envolveu-se com o homem como um homem; tornou-se semente no ventre de uma mulher, de uma menina: tornou-se um homem, falava nas praças, sentava para jantar, mataram-no por isto”. Mataram-no por isto, desde então o têm matado por isto. Pois os homens são tão abertos a aceitar o Mistério último implícito no senso religioso de que razão é feita, são tão abertos diante das hipóteses formuladas mais ou menos poeticamente, mais ou menos filosoficamente, quanto são intransigentes e intolerantes: é intolerável conceber que Deus, o Mistério, tenha-se envolvido com o homem tornando-se um homem como Sauro, como você, como eu, aliás, menos do que você, menos do que eu, porque Ele chegou a trinta e três anos; você, qualquer “você” aqui dentro, salvo pouquíssimos, tem mais do que isso.
O Mistério envolveu-se com a nossa existência, tornou-se fator protagonista desta história, e foi Ele que nos chamou para nos tornar protagonistas com – "com" – com Ele da história.

b) Depois do Ave, verum Corpus natum de Maria virgine, ouvimos um outro trecho de Mozart: o Kyrie, Eleison da Missa da Coroação. “Kyrie, Eleison”, “Senhor, tende piedade”. E que impressão imensamente maior penetrou depois no nosso coração, se estivemos atentos e recolhidos ouvindo a Gospodi, pomilui (Kyrie, Eleison, em russo) de Rachmaninov, da Missa de São João Crisóstomo, da Liturgia de São João Crisóstomo, que durou dez minutos (vocês não se deram conta, durou quase dez minutos, oito minutos, para ser exatos). Porque esta é a coisa mais tremenda que se possa conceber na vida da humanidade: que os protagonistas da mensagem que salva o mundo – os mensageiros daquele Homem que se deixou enredar pelos anos de sua vida, que não quis alongar a sua mão para além dos seus trinta e três anos, senão através da minha e da sua –, justamente você e eu, eu e você, cotidianamente O esquecemos. A traição fundamental é o esquecimento, a não-memória, o ir contra o nosso título (memor Domini, Memores Domini), que nos dá direito e nos define na sociedade: “memores Domini”.

c) Mas, acabado o Kyrie, ouvimos, ainda com a música de Mozart: “Laudate Dominum omnes gentes, collaudate Eum omnes populi quoniam, confirmata est super nos misericordia eius” (“Louvai ao Senhor todas as gentes; louvai-O todos vós, povos, porque foi confirmada sobre nós a Sua misericórdia”). O Kyrie, Eleison termina, portanto, em um “sim” de abraço, como o abraço ao filho pródigo. Cotidianamente, cotidianamente, filho pródigo eu sou, espero que você seja, porque a verdade do Senhor domina para sempre, o desígnio do Pai se cumpre.
Confirmata super nos misericordia eius”: o desígnio do Pai é a misericórdia, a palavra impossível. Deveria ser a primeira a ser apagada do vocabulário, a ser riscada do vocabulário, porque a letícia e a alegria – as outras palavras impossíveis – dependem dela: não dependem do estado de ânimo, mas dela, da misericórdia de um Outro – de um Outro! –. Do seio de um Outro, misteriosamente nascemos, de um coro que é por um Outro misteriosamente constituído, é feito, e encantadoramente canta; até as folhas que caem fazem parte deste canto, e torna-se positivo até o seu apodrecer. É a vitória que a fé reconhece (“Esta é a vitória que vence o mundo: a fé”). A vitória do Mistério, do Onipotente, do pai, pela qual o homem Jesus, bem consciente, primeiro entre todos nós, aceitou ser assassinado injustamente. “Se é possível, que seja diferente; porém, não a minha, mas a Tua vontade seja feita”. Quantos, entre os nossos, nos testemunharam, através dos parentes, ou diretamente antes de morrer, este “seja feita a Tua vontade”, que a Sua vontade é misericórdia, é recomposição de tudo, é a salvação de tudo: “Omnis creatura bona”, toda criatura é bem e retorna para o bem, e a alegria está no coração do homem que aceita este desígnio misterioso, aparentemente contraditório, aparentemente desconhecido no seu destino, no seu fim, porque é desconhecido para nós – nós sentimos como desconhecido até aquilo que acontecerá amanhã.

Estes são os três fatores fundamentais do ser novo, da ontologia nova que entrou no mundo historicamente. Entrou uma ontologia na história; a ontologia, ao invés de estar na origem, penetrou no tecido da história, dilacerando-o como o véu do templo quando Cristo morreu. Mas desta dilaceração emergiu uma nova mais bonita: a positividade de tudo. Tudo é abraçado pela misericórdia, tudo se torna prelúdio de festa, daquele “reino celeste que realiza toda a festa que o coração ansiou” (desde o primeiro ano do segundo grau que eu repito para mim mesmo a frase de Jacopone da Todi).

* * *

Diante desta mensagem, que existência para nós, os chamados, para nós, os eleitos, nós, que Ele brandiu e obrigou a esse caminho – obrigou, certamente, ficamos obrigados de modo tal, que se não tivéssemos querido, teríamos fugido; se não quiséssemos, renegaríamos, porque agora seria preciso renegar se não o aceitássemos –? Que postura, que moralidade, que existência para o homem novo, para o homem chamado, o homem tornado consciente, o homem alcançado pelo anúncio, o homem batizado, que se revestiu de Cristo, tornou-se uma coisa só com Cristo (assim como parece uma coisa só com o meu corpo a minha roupa; segundo a analogia paulina: “revestidos de Cristo”)? Para o ser novo, para a ontologia nova, Deus se fez carne. Com qualquer carne que escolha, bate na porta e não é reconhecido, não é aceito. Nós o reconhecemos, o aceitamos: fez-se reconhecer, fez-se aceitar. Mas, depois: “Kyrie, Eleison”, tende piedade! Falta de memória, a falta de memória que se concretiza ontologicamente – ontologicamente – no pecado. Mas a misericórdia de Deus é confirmada como vitoriosa. A verdade do Senhor, o Seu desígnio sobre o mundo prevalece por toda a eternidade.
Mas, então, quais são as características da existência cristã, isto é, do nosso comportamento, da nossa postura? A nossa moral, a moral nova, qual é? “Fac ut ardeat cor meum in amando Christum Deum ut sibim complaceam” (“Faze com que meu coração seja cheio de ardor no amor a Cristo de tal forma que lhe possa agradar”). Vocês ouviram ontem à noite, o final da primeira parte do Stabat Mater, de Dvorak? Aquele repetir-se contínuo da frase, que é à princípio monótono, mas depois se torna a coisa mais impressionante da sua música: Fac ut ardeat cor meum”, toda a minha existência, a totalidade da existência.

A primeira característica da moralidade nova é a totalidade da existência implicada (de modo tal que quando você vai ao cabelereiro, a imagem que faz do corte de cabelos nasce disto; deve ser uma coisa bonita e boa, porém: para o Senhor). Não se pode evitar esta totalidade. Para onde quer que saltemos, estamos dentro, estamos dentro do abraço; não podemos pregar um botão sem dizer: “Te ofereço”.
Esta é a grande lei: tornar familiar, quase contínuo, óbvio pelo menos, este “Te ofereço” em qualquer gesto, pois caso contrário, gesto algum tem sentido. De fato, quando a pessoa está desesperada nem prega mais o botão, sai desabotoada (não importa de qual parte da roupa seja o botão!). “Fac ut ardeat cor meum [a totalidade] in amando Christum Deum”. Amar é afirmar um outro: que toda ação O afirme – toda ação O afirme! –. É a vida que se torna oração, a totalidade da existência que se torna oração, afirmação de Ti: esquecimento de si e, por isso, reencontro de si entre os braços do homem adulto (“Mulher, não chores”).
A única lei da vida: “Simão, tu me amas?”. “Sim, Senhor, sim”. Vocês não podem passar muitos dias sem sentir a necessidade de reler aquela meia página do vigésimo primeiro capítulo de São João! “In amando Christum Deum ut sibim complaceam”, para que o êxito do meu tempo, das minhas energias, o êxito do meu respirar, do meu estar aqui, do meu existir, seja glória a Ele.
Junto com o vigésimo primeiro capítulo de São João, são para ser lidos sempre os primeiros versículos do capítulo 17 de João: “Pai, chegou a hora. Glorifica o Teu Filho”. Este é o desígnio do Pai, esta é a vontade do Mistério. Nós sabemos exatamente – exatamente, como uma frase direta de nosso pai ou de nossa mãe –, sabemos exatamente aquilo que para o Mistério é o objetivo de todo real: a glória do Seu comprometer-se junto com o homem, do Seu envolver-se com o homem, a glória do Filho feito homem. A glória do Filho feito homem! Como dizer: a glória do Mistério é inexorável, é como um carro armado que esmaga qualquer resistência, mas a glória do Mistério feito homem, homem filho de uma mulher... Ele pode ser combatido, pode ser assassinado. E o assassinato mais normal é o esquecimento total por parte daqueles que tiveram notícia dele. Que dizer do esquecimento daqueles que foram chamados a ser com Ele protagonistas do Evangelho, do bom anúncio, do anúncio bom – do fato de que o Mistério é bom, do rosto bom do Mistério no mundo, do rosto bom do Mistério: misericórdia – ?! “Eis que eu fiz um caminho novo. Ele já existe, não o veem?”. O lamento de Isaías profeta recaia dentro de nós, seja acolhido pelo nosso coração todas as manhãs; todas as manhãs, quando se desencadeia o ataque das trevas à luz, quando a luz deve conquistar para si o lugar entre as trevas e não se contentar com o crepúsculo.
Tempos novos, tempo novo que o Mistério permitiu se concretizasse, se confirmasse nada menos que com a admissão por parte de todos da importância do nascimento de Cristo, tanto que os anos dos homens se contam a partir dele: 1995. Certamente virá o tempo em que a hégira cortará a cabeça de muitos entre nós, como Cristo foi assassinado! Mas a ressurreição é a resposta do onipotente Mistério à pretensão deste mundo; e a ressurreição aconteceu neste mundo, em uma terra: uma pedra revolveu-se e um homem apareceu naquela sala: “A paz esteja convosco”. E eles ficaram com medo, acreditando estar vendo um fantasma. “A paz esteja convosco: dai-me de comer, dai-me de beber”. Comer e beber, comer e beber: você não tem outra coisa a fazer senão e beber? Come e bebe sempre? Todos os seus gestos fundamentais são comer e beber. Justamente! Aqueles mais inexoravelmente carnais.

* * *

Queremos ver agora, em um detalhamento breve, como terceiro ponto, quais são as características do homem destes tempos novos, da existência humana (“Fac ut ardeat cor meum in amando Christum Deum ut sibim complaceam”) em uma época tornada nova pela presença do Verbo feito carne (“Ave, verum Corpus natum de Maria virgine”), e em que todo o mundo, não o sabendo, grita louvores a Deus (“Laudate Dominum omnes gentes”). Anoto estes pontos como programa para a Quaresma. Sejam eles sementes novamente lançadas nos torrões de terra da nossa consciência para derrotar a sua aridez, para derrotar o seu sentimentalismo brutal e naturalista, para derrotar a sugestão, a cessão à sugestão das fantasias do mal, de uma negação do bem.

Primeiro. Um sentimento absolutamente novo e fascinante de si mesmos. Por isso, não posso me deixar frear nem mesmo por todo o mal que fiz, por todo o mal que fiz hoje e que faço; não posso ficar escandalizado com nada daquilo que fui: tudo isto que fiz até a um instante atrás “nunca existiu”. É necessária a onipotência do Mistério para extrair do nada a realidade, a criatura: e seria preciso a força do Mistério; a força infinita e onipotente do Mistério, para tomar nada uma coisa que existe. Isto acontece para os pecados, isto acontece para os meus pecados: “Tudo isto nunca existiu!”.
Kierkegaard, uma vez mais, de maneira icástica tira uma conclusão; “Meu não é aquilo que pertence a mim, mas aquilo a que eu pertenço”. Não diz: “Meu não é aquilo que pertence a mim, mas aquilo que pertence a um outro”, mas sim: “Meu é aquilo a que eu pertenço”. Portanto, as coisas são minhas, e as pessoas são minhas, mas eu “pertenço a”. Portanto, coisas e pessoas pertencem, em mim, a um Outro – em mim, a um Outro –. Não pertenço eu a elas; este seria o aspecto mais negativo, o equívoco mais ridículo e ao mesmo tempo mais infame, mais deletério. Ou seja, pessoas e coisas pertencem a mim, mas não eu a elas: eu pertenço a Ti, ó Cristo. Em mim, estas pessoas e estas coisas pertencem a Ti, em mim, pertencem a Ti: são minhas, ou Tuas. “Meu não é aquilo que pertence a mim, mas aquilo a que eu pertenço”. Falar-se-ia da morte do eu; é para possuir a verdadeira vida do eu: a minha verdadeira vida és Tu. De resto, o primeiro milagre, o primeiro milagre em sentido absoluto é a descoberta do “tu”, porque é o “tu” que traz atrás de si os contornos apenas delineados da presença do Infinito, do Eterno, de Jesus homem – de Jesus, homem!
Quero insistir ainda sobre isto! Esta autoconsciência nova é um sujeito novo que entra no mundo, que está no mundo – nós somos sujeitos novos que entram no mundo – é uma autoconsciência diversa daquela que todos os outros têm: o meu eu és Tu, tudo aquilo que é meu o é porque eu sou Teu – o é Porque eu sou Teu! –. Este impressionante desapego, esta reviravolta de dar vertigem, é anunciado por São Paulo na primeira Carta aos Coríntios, no capítulo sétimo: “Isto vos digo, irmãos: o tempo se faz breve. De agora em diante, aqueles que têm esposa, vivam como se não tivessem, aqueles que choram como se não chorassem e aqueles que se regozijam como se não regozijassem, aqueles que compram como se não comprassem, aqueles que usam do mundo como se não usassem dele. Passa, de fato, a aparência deste mundo”. D. Eugenio Corecco, o senhor me disse no ano passado, quando saía do seu quarto, naquele longo corredor estreito: “O tempo se faz breve”. Para o senhor completou-se: torne sempre os nossos olhos capazes de ver a brevidade das aparências.

Segundo. Isto nos faz compreender melhor uma frase do poeta inglês Sheley, que ouvimos já ontem, mas que é muito mais profunda do que ontem compreendemos: “Olhamos para o antes e o depois e nos consumimos por aquilo que não existe”. Consumimo-nos porque o presente não tem densidade, olhamos para o antes e o depois. Como diante de uma tentação: pegar, agarrar ou não agarrar? Tomar como quero essa pessoa ou não tomá-la como quero? É um futuro, é um amanhã, é um depois, é dentro de um minuto, é dentro de um segundo. Quando você a toma, se cede, fica insatisfeito, tanto é verdade que cerra os dentes, aperta impotente uma coisa que lhe foge entre os dedos que querem agarrar, morde uma coisa que lhe foge entre os dentes. “Olhamos para o antes e o depois e nos consumimos por aquilo que não existe”: existe somente o Tu. O que existe é somente o Tu, o Tu do Ser, do qual aquela pessoa é expressão. E o sacrilégio que eu cometo ao morder com os meus dentes, ao apertar com as minhas mãos, mesmo que com as mãos e os dentes da imaginação, este sacrilégio que eu cometo demonstra que o que esperei do “depois” não está mais no presente, já não está mais no presente.

Terceiro. Na Carta a Diogneto, no ano 150, o autor cristão escreve: “Têm entre eles um respeito que aos outros é inconcebível”. Têm entre eles, os cristãos, um respeito que aos outros é inconcebível. “Respeito” deriva do latim respicio, que quer dizer olhar para uma coisa tendo presente, com o rabo do olho, uma outra: é uma outra coisa aquela que se vê com o rabo do olho, que domina o centro da observação. Respicio, respeito: olhar para uma pessoa, para uma coisa tendo presente uma outra que, do horizonte, domina, como o sol. O sol está como sempre no canto dos olhos e centra o nosso olhar sobre tudo.

Estas três coisas, portanto: uma autoconsciência nova (meu não é aquilo que eu detenho, mas aquilo a que eu pertenço); a insatisfação inexorável do instante no qual você agarra, no qual você agarrasse: “uma capacidade de respeito desconhecida dos outros”, um respeito pela pessoa, um respeito pelo outro, dominado por uma outra figura. Você está no centro do meu olhar e do meu coração, mas no horizonte último, percebida com o rabo do olho, uma outra figura a ilumina, uma outra figura lhe dá vida, lhe dá carne, lhe dá ossos, lhe dá existência: você é minha porque é de um Outro, e porque eu sou de um Outro. Porque assim eu sou de um Outro: aceitando que você seja de um Outro. Reconhecendo que você é de um Outro, eu sou de um Outro.

Uma observação. O pecado é feio. A fugacidade é feia. Você não tem nem tempo de dizer: “Que bonito”, que já passou. Por isso é um engano, e o engano prevalece sobre a impressão do belo. Se você relembra o belo, se evoca o belo, tem que fazer um esforço, evoca algo que você cria, que você recria, recria para você na imaginação aquilo que não estava na existência. O pecado é feio, porque é feio como um engano. Uma coisa bonita, usada para um engano, mata você. Ainda, que, retorna o eco de “o tempo se faz breve”, da primeira Carta aos Coríntios.
Lemos, em uma sentença dos Padres do deserto: “Um irmão interrogou o abade Poemen e lhe disse: ‘Meu pai, quando um irmão mora comigo, para onde queres que eu olhe?’. Ele lhe disse: ‘Coloca os teus pecados sobre a cabeça dele e olha para eles’.” Assassinato do outro e feiura, a feiura feita por você, não na criatura, que é boa. “‘Meu pai, quando um irmão mora comigo, para onde queres que eu olhe?’. Ele lhe disse: ‘Coloca os teus pecados sobre a cabeça dele e olha para eles’”.

Mas é justamente uma noviça dos primeiríssimos anos, recém ingressada na casa, que nos dá uma lição aguda sobre a origem cronológica e fisiológica do mal, do pecado: “Hoje – escreve em uma carta – eu estava pensando que a falta de fé não é nunca em relação às declarações que fazemos de crer em Jesus Cristo como formulação teórica [teoricamente, Jesus Cristo Jesus Cristo; é difícil que haja alguém entre nós que coloque isto em dúvida]; mas temos falta de fé todas as vezes em que não acreditamos na promessa, isto é, na experiência de bem que fazemos”. Temos falta de fé todas as vezes em que não acreditamos na promessa do cêntuplo nesta vida, do homem novo e do cêntuplo nesta vida, isto é, todas as vezes em que não acreditamos “na experiência de bem que fazemos”: se está presente, nos muda. Não acreditamos na mudança como possibilidade e como já em ação. Isto é geral: de quem quer que nos aproximemos, entre vocês, é difícil que não haja um desnorteamento nele: porque vocês não acreditam no bem que já fazem, que não teriam feito. É como se fosse algo a ser tolerado, mais isto para ser suportado, de tanto que a raiz do desejo tende para outra coisa: para o efêmero e o engano. E enquanto - prossegue a carta - ficam sendo apenas preceitos morais para se seguir [respeito pela pessoa, negação do engano, resistência à imaginação negativa e equívoca], enquanto ficam sendo preceitos morais para se seguir, tudo vai bem”, é bonito! A descrição do homem novo é bonita. “Mas quando Ele [cortando estas figuras como uma espada] declara amar-me tanto a ponto de dar a vida por mim, e desejar-me tanto a ponto de me perdoar sempre, então, naquele momento, aquilo que parece uma simples reserva diante da existência concreta, reserva tão facilmente compreensível por causa da nossa fraqueza, revela-se, com o tempo, o lugar do não. Este não ter certeza, este estar insatisfeitos com o bem que fazemos, e que não teríamos feito porque é ele que nos dá esta nova consistência de autoconsciência, este novo sentimento do outro, este novo sentimento da posse, dramático, pois o que é meu é meu porque eu sou de um outro, gera uma reticência: “mas... pode ser, quem sabe!”. A pessoa não diz estou insatisfeito, como diria se fosse sincera, mas “não estou convencido, não me convence”. Esta reticência – exatamente a palavra reticência é corretíssima – por causa da nossa fraqueza, torna-se, com o tempo, se dura através do tempo, o lugar do “não”. A pessoa não diz “não” abertamente contra Deus que se fez homem, contra Cristo e Cristo crucificado; não diz não ao Natal ou à Páscoa. Vejam como vocês vivem a casa! Não tem a ver. A casa então não tem nenhum significado, exceto de um hotel com amigos, um hotel amigo, onde se pode pretender, onde sobretudo se pode pretender, onde esperamos que tudo possa ser feito para nós e onde podemos exigir algo que nos pareça estar faltando: tenho exigência disso e vocês me dão! E o “não”, como acutíssimamente se diz pouco mais adiante na carta, o “não” é aos instrumentos de que Jesus se serve para chegar a nós. Não é a Ele, é aos instrumentos (porém, que uma menina nessa idade compreenda estas coisas!): “Aquilo que parece uma simples reserva (...) revela-se com o tempo o lugar do ‘não’, é um ato real de falta de fé diante da testemunha que vem ao meu encontro em nome de Cristo. E, assim, esta reserva tão fácil revela-se como um impedimento real ao amor de Cristo, à possibilidade de fazer experiência d'Ele”. Se você me traz a mensagem – a Sua presença – na sua experiência, se você a traz para mim, eu a experimento; se você não a traz para mim, eu não a experimento, é uma ideia que posso ler nos livros, é uma formulação teórica. Por isso, se a casa não é mais a fonte da experiência d’Ele, que atrativo pode ter? (Poderia ter um atrativo se houvesse ali uma garota, ou se houvesse algumas garotas, mas também nisso se é mais livre fora). Porque duvidando disto [aquela reserva de antes], se impeço a mim mesma de dar crédito ao modo e ao lugar [compreendam que espécie de lógica!], se impeço a mim mesma [reforça] de dar crédito ao modo e ao lugar em que diz acontecer [em que Jesus diz acontecer: ‘Eu aconteço na casa, Eu aconteço na amiga, Eu aconteço no Grupo Adulto’], de que outro modo deveria esperá-Lo?”. De que outro? Se impeço a mim mesmo de dar crédito ao modo e ao lugar em que Ele diz acontecer – e Ele disse a você porque o outro o diz a você, a casa o diz, o Grupo Adulto o diz –, de que outro modo eu deveria esperá-Lo? Um sonho meu? Compreendo logo que é um sonho meu. “Tentei responder a esta questão, mas daqui em diante são apenas tentativas de imaginação. Aqui começa a abstração”. Uma vocação, ou seja, uma vida dada, que se torne abstração é impossível de viver, é um absurdo! Porque a vida é a coisa mais contrária à abstração que exista – por isso os filósofos não compreendem a vida e os poetas têm de mudá-la imaginativamente.

O contrário desta reticência, o que impede aquilo que esta garota chamava “reticência” – a reticência é para com Jesus porque é para com aqueles através dos quais Ele chegou a mim; é uma reticência para com o lugar em que está o poço do qual eu bebi no princípio – é um ímpeto de “rendição”. Este ímpeto de “rendição” rasga você, separa você daquilo que você é; é um ímpeto tal que é como se deixasse para trás as suas roupas: você fica nua, isto é, pobre. Pobre: não lhe importa se os outros riem, se os outros se escandalizam, se os outros distorcem as coisas; se os outros riem, se escandalizam-se, se distorcem as coisas não lhe importa! É um ímpeto de rendição que se chama “pobreza”, ou melhor, cuja consequência imponente, existencial, é a pobreza. Não parece, mas o amor à pobreza, a aceitação óbvia da pobreza, é o índice de que a reticência não existe, é o índice de que este ímpeto de rendição existe. Pobreza real de carros, de dinheiro, de telefone, de roupas, de teatros, de aparelhos de televisão, daquilo que vocês quiserem, de tudo aquilo sobre o qual vocês descarregam o que lhes parece faltar, sobre o qual descarregam o desejo daquilo que lhes parece faltar, e assim: “Aquilo que agarrei ansiosa, nas mãos cerradas se desfez”, entre os dedos que querem agarrar se desfez (“Aonde você vai?”. “Vou sair”. Vai ao cinema. Sim, pelo amor de Deus, vá ao cinema o quanto você quiser, mas não me impeça de olhar mal para você tão logo volte para casa. Sei que depende do filme! Um em mil. Um em mil. A proporção, hoje, não é muito maior). Ou o empreender relações com coisas e pessoas é um ato de desejo de conhecer a beleza de Cristo, a verdade de Cristo, de compadecer a condenação de Cristo, ou então é o modo de participar da condenação do mundo e, em última instância, do seu assassinato. Porque o mundo é assassino – vejam as duas últimas linhas do primeiro capítulo da Sabedoria: “O homem busca a morte” –. O mundo é, por sua natureza, em última instância, assassino.

Dissemos, portanto, quais são as características da ontologia nova e também as características de uma existência nova: “Fac ut ardeat cour meum in amando Christum Deum”. A mudança de mentalidade entre a Idade Média e a Idade Moderna está toda na diversa interpretação deste terceto do Stabat Mater: é repugnante ao homem de hoje, é nefando o “Fac ut ardeat cour meum in amando Christum Deum ut sibi complaceam”, porque parece uma abstração que toma toda a vida, que se torna regra da vida. E, pelo contrário, não é! É uma autoconsciência nova, em que o verdadeiro eu está no ser possuído; é um respeito novo pelo homem, que os outros desconhecem; é uma densidade do instante, do presente, do presente puro, que é o instante consistente: que não remete para o ontem, que não é bonito porque faz pensar no ontem ou faz pensar no instante seguinte; é a vitória que o ímpeto de rendição, de adesão, obtém sobre a reticência maligna, sobre a serpente da reticência, que não diz: “Deus não existe”, mas: “Se comes o fruto, serás como Deus” – se comes o fruto, serás feliz.
Todo este elenco de coisas constitui o povo novo, que pode ser identificado segundo aquilo que diz Santo Agostinho no De civitate Dei, XIX, 24: “Ut videatur qualis quisque populus sit illa sunt intuenda quae diligit”: para que se veja que tipo de povo é (que tipo de casa é, que tipo de Grupo Adulto é, que tipo de cristandade é), devem ser fixadas descobertas, intuídas (intuenda) as coisas que ele ama. Aquilo que você ama o define. Santo Tomás diz: “A vida do homem consiste no afeto que principalmente o sustenta e no qual encontra a sua maior satisfação”. Este é o critério que define um povo. Um povo: um homem e uma mulher que se casam, uma família, uma casa do Grupo Adulto, um convento de frades, um mosteiro de monges. Um povo como o medieval ou um povo como o do século XV, do XVI, do XVII, do XVIII, do XIX, do XX, do XXI, que é descristianizado como quando Cristo veio – como quando Cristo veio! –, e nós estamos no nível do “sim” de São Pedro, nós estamos no nível do estupor de André e João, naquele nível. Se estamos em tal nível, com todos os pecados que trazemos atrás de nós, nós vivemos a aliança, vivemos a promessa, e “quem tem esta esperança purifica-se como Ele é puro”.
Um amigo nosso nos dá a regra que devemos levar conosco para casa, a recomendação que vocês devem levar para casa. É tirada dos Padres do deserto: “Tu, aplica-te em fazer o bem e não temas a tua fraqueza”. Acrescento: “na próspera ou na má sorte”, como diz a fórmula do matrimônio. Isto se vê pelo presente. Isto define o presente: “Aplica-te em fazer o bem”. O primeiro bem é o reconhecimento de Jesus, sem reservas. “Não temas a tua fraqueza”: na favorável ou desfavorável circunstância. O presente, o tempo presente, o instante presente é a verificação.
“No Santuário te busquei para contemplar o Teu Poder e a Tua glória”. “No Santuário te busquei”. No lugar que Tu escolheste para te comunicar, busquei-Te: na casa, no Grupo Adulto, no Movimento, na Igreja. “No Santuário te busquei para contemplar o Teu Poder e a Tua glória”: se eu não fosse fraco, Tu não serias potente, eu não saberia que Tu és potente, não saberia o que quer dizer que Tu és potente. E reconhecer isto é de tal modo glória Tua que se torna a minha alegria. “A glória de Deus é o homem que vive”, é o homem na alegria, na plenitude, na alegria. “Porque a Tua graça vale mais do que a vida”.
As coisas que dissemos são importantes, e verdadeiras; somos nada, pobre gente no pior sentido da palavra, pobres vermes se não escutamos estas palavras.

Este texto foi publicado como Palavra entre nós em Litterae Communionis, maio/junho 1995. Traduzido por Durval Cordas.